Por mais que tente me esconder sempre haverá uma parte de mim que sempre me entregará.
Foram tantas as luzes que esconderam minha face e apenas era uma fantasia.
Tantas foram as vezes que olhei o brilho da lua, tentando forçar minha memória a buscar algumas imagens de sol.
Quanto eu já chorei, só e calada por não poder me permitir ser fraca.
Quantos sonhos já matei com minhas próprias mãos e nem pude chorar por eles no meu silêncio infantil.
E hoje o dia está pálido e começa a história de mais uma década de amor. Inúmeras vidas passando por imutáveis momentos de magia, de explendor ou maldição, ou de terror.
Não consigo dormir e algo me incomoda.
Todos descansam em seus túmulos, posso escutar o cantar dos pássaros lá fora e através das cortinas, vejo borboletas de vidro batendo suas asas. Um espetáculo exótico e raro.
Hoje quando acordei tive a sensação que algo aconteceria, ou talvez poderia apenas ser um momento de desconforto, pois o sol já apontava no horizonte quando Ana bateu em minha porta.
-Vamos acorde!! Hoje é uma grande noite!
-Parece normal. Nada de diferente salta aos meus olhos.
-Esqueceu que data é hoje?
-Tenho motivos para lembrar?
-Quanto mal humor!! Hoje tem sarau e você prometeu que contaria a história da vampira Anabeli.
-Como poderia ter me esquecido dessa data?
No cabaré sempre marcamos saraus aonde contamos em poesias, fatos que acontecem com vampiros e que partem do extremo da loucura ao auge do sofrimento e amor. Ana detinha um sorriso lindo no olhar, mas mesmo assim tenho certeza de que minha face trazia estampada a frustração.
-Onde vamos! Todos estão eufóricos!
Entendia sua empolgação, afinal raramente eu subia ao palco pra declamar. Minhas meninas amavam ouvir e saber de tudo o que já acontecera aqui.
-Saia de meu quarto! Em meia horam, irei.
Mesmo diante do meu péssimo humor, cantarolando ela saiu, estava visivelmente cansada e sem forças pra fingir que iria me emocionar, mas mesmo assim peguei um casaco qualquer e me vesti.
Logo em seguida, desci.
Todas estavam arrumando o Cabaré.
Era bom mesmo, eu nunca dou moradia e sustento pra fazerem o que querem. Ana veio em minha direção com uma taça de vinho, pois tenho esse costume de beber. Sentei e fiquei esperando a casa encher. E sinceramente nada me chamava a atenção.
Quando estivesse totalmente lotado, as luzes se abaixariam e começaria o sarau. Ofélia, outra de minhas belas vampiras foi quem fez a apresentação.
-Que nessa noite de dramas e camas, comece o Sarau e que as declarações sejam verdadeiras e infames! Apreciem lentamente o veneno que é lhes falado e se entorpeçam com as falas de nossas vampiras. Senhora faça as honras, para que possamos deleitar toda sua audácia.
Exibi nos lábios o sorriso mais falso que consegui, seguido por passos de marfim e ao palco me dirigi. Meu olhar sempre elevado e com certa pompa, vislumbrei o chão. Então, entoei:
-Não faz tanto tempo assim desde que aquele incidente marcou para sempre minha memória. Ouçam o que tenho a dizer, não por piedade ou porque são as palavras misteriosas de uma intelectual viciada, repleta de conhecimento vazio, mas ouçam, porque são as palavras sinceras de uma criatura, uma vampira, uma cortesã que apesar de ser a melhor no que faz, não passa de um ser que se vende e vaga entre as cinzas e escuridão negociando alguma proteção por bom dinheiro. Chamo-me Mistério, ou ao menos, é assim que sou chamada.
-Hoje descreverei não sobre minhas capacidades ou competências, mas sim sobre uma alma de vampira conturbada, repleta de nuances obscuros e audazes, uma alma presa a um corpo escultural de pele pálida, insinuante, cabelos negros como o véu da noite e olhos tão sensuais e de um negrume tão profundo que parecem buracos negros prestes a trazer para si, os olhares dos que ousavam encara-la. Anabeli, minha melhor menina. Sempre de vestido vermelho intenso, colado ao corpo, detalhando sua silhueta provocante, como sempre. Anabeli possue lábios carnudos, vermelhos e molhados, qualquer um com um mínimo de imaginação saberia como a beijar e ela o retribuiria com tanta prioridade e competência, que poucos seriam os homens ou mulheres que seriam capazes de resistir à sua boca ávida pelos sucos do corpo. Meus clientes sonhavam só em olhar para ela. Sexo em nome de flor, minha melhor mercadoria, uma pseudo-donzela com qualidades ímpares e que ocupava lugar privilegiado em minha cama.
-Ela sempre soube muito bem como utilizar seus encantos quando fechávamos o cabaré mais cedo. Após tudo o que aconteceu, ainda sinto calafrios armazenados em minha pele, só de pensar na tal cena. Ela mal esperava o fechamento da casa e já corria para meu quarto ao som de acordes do destruído piano, conversávamos ao sabor do vinho. Foram tantas noites assim... Mas não devo falar do que eu sinto e sim da história em si.
-Era das meninas que trabalham para mim, a mais intensa! A mais profana! A mais pervertida! A mais vulgar! Jamais colocava o dinheiro como prioridade, tornara-se prostituta por centenas de outras razões.A principal delas, era o prazer enorme que procurava saciar. Ela possuía um fogo eterno queimando em seu peito, incendiando suas entranhas, abalando seus sentidos e elevando suas paixões a níveis tão extremos que poucos compreendiam. Possuía ataques de um frenesi tão incontrolável, que por vezes eu era obrigada a trancá-la em um quarto preparado apenas para isso. Uma sala de loucos! Muitos clientes que freqüentam o cabaré são donos de gostos e fantasias estranhas e elaboramos um quarto acolchoado para se baterem. De Anabeli poderíamos esperar tudo. Ela se sujeitava a todos os desejos de seus mestres, se submetia a perversões e prazeres inomináveis. Sentia prazer com isso! Via-se em cristal de nascença, cresceu para tornar-se o objeto de muitos e voar com cada palavra ofensiva que seus clientes fieis ao exagero lhe proferiam. Ria com cada tapa e com as sensações do sangue quente, viscoso, que corria em suas mortas veias. Deixava-se brincar sobre uma luz morta e bela. Espancava-os, humilhava-os, dominava-os. Uma cortesã de primeira. Única e competente. Insana.
-Em uma noite o movimento da casa foi fraco. Mesmo para as melhores que já pisaram nesta cidade imunda, há dias ruim e de pouca freguesia. Aquele dia foi um desses terríveis momentos que pouco dinheiro circulou entre essas paredes. Apesar disso, os poucos clientes foram intensos. Eu mesma estava muito cansada. E eles procuravam, prazeres de lindas vampiras.
-Após eu fechar as portas e me despedir do último lorde subi calmamente as escadas, meu vestido rasgado na lateral, o batom manchado, estava com meu melhor par de sapatos nas mãos. Não suportaria o peso de andar sobre os saltos naquele momento. Enquanto subia, tinha em minha mente apenas a vontade enorme de tomar um bom banho, de me esquecer da vida e sentir o calor da água em minha banheira, com cheiros exóticos e sais aromáticos, sendo vigiada pela chama tênue das velas para produzirem uma luz inebriante a descansar meus olhos. Passei em frente ao quarto de Anabeli e a porta estava aberta. Olhei e não a percebi, apenas ouvi sua voz aveludada e sedutora me chamando. Não estava lá. Olhei novamente para a janela, então a vi linda e de costas, completamente nua, trajando as meias sete-oitavos e se apoiava no batente. Aproximei-me e ao seu pedido, me sentei . Protestei, pois estava suja, suada, com o cheiro de meu cliente ainda em mim. O tom de voz de Anabeli se intensificou.
-Sente-se querida e verá um grande espetáculo que seu cabaré nunca presenciou.
Ordenou que eu a obedecesse sem questionar, não é do meu feitio, mas obedeci. Perdida em sua voz imperativa. Acendi um de meus cigarettes. Ela estava ali, parada, com seu belo corpo em minha frente, a cena me capturou de imediato, eu observava suas curvas e como seu corpo se movimentava como uma ninfa perversa. A intrigante cena detinha minha atenção. A observei atentamente, suas costas carregavam pequenas e infindáveis cicatrizes, tão imperceptíveis que apenas eu as conhecia com detalhes, pois havia analisado cada milímetro de sua pele antes de a contratar.
-Anabeli por que você esta de costas? O que esta acontecendo? Estou cansada, o dia já vai se abrir e...
-Que se abram as cortinas!! Um sussurro forte dela me trouxe de volta de minhas lamúrias.
Ela permanecia de costas, mas agora começava a se aranhar. Dava para ver suas mãos descerem pela cintura rasgando sua pele em uma dança sistemática e exótica se iniciou levando seu corpo descrito em círculos e colocado de tal maneira que minha curiosidade só fez aumentar! Lentamente e provocante e completamente atordoante eu estava quando vi em sua mão, uma estaca como se esta fosse, um brinquedo em volúpia. O objeto prateado brilhava à luz das velas e da lâmpada do abajur vermelho, que ficava na cabeceira da cama e emprestava uma coloração carmesim a todo o ambiente, parecia uma imitação assassina de uma mente em colapso! Confesso que a cena me provocou enormemente, depositando uma imensa excitação em mim.
-Ergui meus olhos e finalmente vi a face transtornada de minha garotinha. Era uma mulher diferente, descontrolada, parecia possuída por demônios ou anjos da depravação! Seus olhos queimavam malícia, sua boca levemente entortada, mordia seu lábio inferior e demonstrava que já estava fora de si. as lágrimas que percorriam sua face contrastavam com sua doce loucura.
-Olhando fixamente para mim deixou a estaca cair no chão. Seu olhar não era o mesmo e a cada segundo mudava mais. Ela lambeu cada gota de lágrima no chão pegando a estaca que ali estava, a qual lambeu.
-Ela a enfiava em sua boca como se não houve dor. E acreditem ela fez tudo isso sem sequer se cortar. Foi como um espetáculo no limite entre o céu e o inferno, algo de quem não tem nada a perder. Ao menos, eu não havia visto o sangue ainda. Não até aquele momento em que ela começou a rir provocantemente. Entre seus dentes de uma brancura insuperável, filetes de sangue surgiram. Tentei me levantar, mas uma mão invisível me prendia no lugar. Era minha própria curiosidade, minha busca pelo inusitado e o limite. Era visão com o sangue e minha curiosidade que me prendiam à cama e me impedia de correr em seu auxílio.
-A estaca começou a passear por todo o seu corpo,por cada parte que eu conhecia bem. De tão afiada, produzia linhas finíssimas de sangue, de cortes milimétricos, deixando a idéia de estradas para um caminho infernal. Em minha boca, a saliva brotava como um rio farto, apenas com a idéia de morder aquele ato tão nu.
-Era alucinógeno, viciante, provocante, intenso.
-À medida que o sangue brotava com maior intensidade eu comecei a perceber padrões e figuras, escritas em línguas. Era algo completamente sem sentido e tão maravilhoso que minhas mãos já apertavam o colchão a ponto de rasgá-lo.
-Ela ria, chorava, praguejava, pronunciava palavras tão fortes que nem mesmo eu, uma vampira experiente, seria capaz de repeti-las. O sangue jorrava vermelho, forte, grosso, a vida em forma líquida.
-Em um momento, nem sei ao certo quanto tempo havia decorrido, ela começou a andar em direção à sua banheira, o rastro de sangue a seguia enquanto se movimentava. Parou em frente de um pequeno armário de madeira, decorado com prata e madrepérola, o abriu, pegou vários vidros de perfume e os derramou na água que havia dentro da banheira. Eu mordia meu lábio e sentia o gosto de meu próprio sangue, perdida com o que acontecia. Curiosa e atônica com minha própria perversidade.
-Voltando para o quarto, Anabeli, totalmente louca começa a dançar com um manequim que usava para pendurar suas roupas, eu não me lembro bem, mas no meio de seu choro, cantarolava algo como Bach e dançava de um lado para o outro em busca de afeto sob a luz de uma lua que não existia.
-Ela entrou calmamente na banheira, contrária aos seus gritos de insanidade, de loucura, de paixão imensa, encenando seu particular teatro macabro e hostil que eu mesma jamais havia presenciado e tudo culminou com um grito tão primordial que ela já não era mais uma vampira, era uma besta alimentada pela lascívia e pelo prazer da própria dor e sangue.
-Foi quando de olhos abertos, parou de se mover. O meu transe desapareceu algum tempo depois. Corri em direção de Anabeli, vi que ela não respirava! Percebi que não era apenas a estaca que ela havia introduzido em seu coração, mas também havia o falo cortante em suas mãos e a banheira estava repleta com tanto sangue! Foi então que me lembrei da água perfumada, tudo aquilo era irreal. Agonizante! Abaneli havia se matado no momento em que ela havia se tornado o que havia procurado por toda sua vida: o prazer e a perversão. Olhei assustada ao redor. Havia um frasco perto da banheira com uma cruz e a figura de Santa Bárbara dentro dele. Instintivamente eu o pegue e também havia água. Água benta. Despejei seu conteúdo na banheira, junto com o sangue, o perfume e o corpo inerte, rasgado, perfurado, com uma face chorosa e repleta de um amor e doçura que ninguém mais haveria de ter.
-Enquanto seu corpo evaporava na banheira, achei uma garrafa jogada com um resto de uma Champagne. Ao seu lado, sentei e ali fiquei, segurando sua mão até que ela também se diluísse e a analisei, na mesma frieza com que eu analisei os fatos. E me lembrei de algo: ´´o sangue é uma moeda corrente e forte no mundo em que vivemos´´.
-Sai dali e fui dormir.
Fiquei calada esperando alguma reação depois de minha apresentação.
Depois de um intenso silêncio do público, os aplausos berrantes eu ouvi.
Como eram mais hipócritas do que eu, levantei a taça e um brinde ofereci.
Vieram em minha memória, outras histórias dramáticas, histórias de amores, de dores que em toda minha vida vampírica, presenciei ou ouvi os mais velhos a conta-las...
Como a vez em que uma guerra entre os próprios vampiros quase os extinguiu...
Mas essa é uma história para o próximo Sarau...
Escritora:Mitra Oliver
Contatos:Vampirecabaret@hotmail.com